Prefiro ser gorda e feliz
A luta para emagrecer acaba nos levando a ouvir histórias hilárias sobre mortos e vivos, peixes cegos, bacanais e ciúmes doentios
Texto MILENA GALDINO
Ilustração ROMULO GERALDINO
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Tempos atrás uma personagem de novela interpretada por Deborah Secco soltou essa: "toda mulher chega a uma idade em que tem de escolher se quer ser magra ou quer ser feliz. Eu escolhi ser magra".
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É verdade: ou se é magra, ou feliz. Se por um lado a comida dá um prazer danado, por outro a guerra contra as calorias garante boas risadas. Quer ver? Na tentativa de me livrar dos dez quilos que me apareceram nos últimos dois anos – ok, assumo que os procurei – fiz de tudo. Já me matriculei nas aulas de spinning, corrida, hidrospinning, levei choque, fui congelada, sobrevivi a 20 manthus, fiz dieta integral, tomei chá de todas as plantas que amargam, comi pó de feijão branco, tomei litros de babosa, usei drogas pesadas como sibutramina e até fui coberta de uma mistura de massa de bolo numa suposta lipo em que te lambuzam de chocolate, te enrolam num plástico filme e depois te colocam para assar (literalmente).
Ainda brigada com a silhueta, fui parar numa clinica de massagens estéticas. São sessões de tortura chinesa. E por que eu continuo indo? Não é o tratamento nem seus resultados, mas as conversas impagáveis que ouço (geralmente protagonizadas pelas profissionais da massagem, uma vez que as clientes são temporariamente rebaixadas a seres inanimados anestesiados por dor extrema, um estado de pré-coma).
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Todas as quintas-feiras torço para ficar no mesmo andar da Maressa. Da maca, consigo ouvi-la falar enquanto trabalha. Veja este trecho de uma conversa dela com a minha massagista na segunda semana de novembro:
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– Cléo, meu feriado de finados foi uma correria. Fui ao cemitério de Taguatinga, depois ao da Ocidental. Tudo lotado, menina. Mas eu tinha de visitar os parentes todos, né?
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– Mesmo, Maressa? Por que você não me ligou da Ocidental para eu ir te encontrar?
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– Não dava, eu estava com muita gente. Levei os vivos todos para ver os mortos. E além dos da família eu tinha de visitar o túmulo do prefeito da Ocidental, aquele que morreu depois da cirurgia de redução do estômago. Ô homem bonito...
– Morreu cinco dias depois da operação, né? Que coisa…
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A essa altura, suspeitei de que as duas tinham combinado a conversa para passar medo nas clientes que consideram a bariátrica boa opção para emagrecer. Marketing lavado, pensei, querem é fidelizar a clientela fazendo todo mundo ficar com medo de morrer na faca.
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Resolvi investigar do celular mesmo, e vi que a triste história do prefeito bonito que queria ser magro era pura verdade. Ele morreu no inicio de 2008. E Maressa continuou:
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– Cléo, estou avisando pra todo mundo que quando eu morrer, quero ser enterrada perto daquele moço gato.
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–Uai, Maressa, o que você vai poder fazer com ele se você vai estar morta? – questionou a sensata amiga.
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– Nada, mas é que, além de ser bonito, ele está enterrado perto da porta da frente, e não quero ficar sozinha naquele paradão lá do fundo. É muito fim de carreira. É sem graça, o dia demora a passar. Pelo menos lá na frente tem o barulho dos carros, tem gente falando... Bem mais animado.
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A essa altura eu olhei para a Cléo segurando o riso e o meu fígado, que parecia uma geleca na mão dela.
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E a Maressa continuou de lá:
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– E tá morrendo gente, né? Sabia que duas mulheres do salão aqui da quadra morreram também?
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– UÄ—, da Rita eu sabia. Sofreu até com o câncer. Quem mais? – quis saber a Cléo.
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-A Carmem.
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A expressão da Cléo mudou.
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– Meu Deus, a Carmem morreu? Ela é minha amiga! – disse, apavorada.
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– Não, Cléo, não é essa, não – esclareceu. A Carmem sua amiga tá viva. Essa que eu estou falando é outra, lá do salão mais lá perto do Eixo.
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E Cléo respirou aliviada:
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– Ah, ainda bem que foi outra. Credo, Maressa, bora mudar o assunto – pediu.
E a Maressa, com outra história na ponta da lingua, emendou:
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– Viu a reportagem do peixe no Fantástico?
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– Não, qual?
– Ué, diz que esse peixe nasce e vive num buraco, e por causa disso não tem cor nenhuma. É branco da cor do meu jaleco. E o pior não tem pigmento nem no olho, é cego.
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– Mesmo? instigou a Cléo sem querer prestar muita atenção.
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– Depois que vi essa reportagem eu só fico toda hora me lembrando do pobre do peixe cego. Deve ser muito ruim ser cego, ainda mais dentro da água, porque já é difícil de enxergar mergulhando, mesmo pra quem tem o olho bom.
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– Ah, nem, Maressa, você tem cada coisa... suspirou Cléo enquanto espancava minhas costas.
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– Verdade! Tô aqui fazendo massagem, e de repente penso no peixe.
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– Contei para o meu marido que não consigo esquecer isso e ele disse que só penso em coisa estranha.
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E o marido da Maressa – é preciso contar – não é qualquer cara. O tal Rafael é mais vigiado que o presidente dos Estados Unidos. Ai do moço se a Maressa suspeitar de que o perfume das suas roupas está diferente, ou se aparecer com um número estranho gravado no celular.
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As colegas de trabalho da Maressa contam que o ciúme chega ao extremo de ela aproveitar os intervalos para correr no orelhão com uma lista de números tirados do celular dele. Ela sai ligando, de um a um, tirando satisfação sobre quem era e o que queria com o marido dela. Se for mulher, então, é guerra na certa.
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Diz a Cléo que o Rafael não tem paz nem para trabalhar, porque a "Dona Encrenca” liga de hora em hora para saber onde e com quem está.
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– Mas eu melhorei, porque antes eu também vasculhava a carteira dele, os bolsos, a pasta, tudo. E também joguei celular dele fora, mas agora não jogo mais –defendeu-se a Maressa lá do outro lado do corredor.
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Engana-se quem pensa que a Maressa é a única desmiolada. Dia desses tinha uma paciente de 72 anos afirmando que não pode mais ficar grávida porque está tomando remédio forte para alergia.
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Outra velhinha contava aos berros como achou graça de levar uma amiga virgem e amargurada por nunca ter se casado ao maior bacanal do mundo em Amsterdã.
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Ou seja, acaba a sessão e estou me contorcendo de dor e de risos. Não sou daquelas que juraram viver em paz com o espelho mesmo tendo dezenas de quilos a mais, até porque quem gosta de pneu é borracheiro.
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Mas vamos lá, Deborah Secco, uma conversa dessas é impagável: melhor ser gorda e ser feliz.